quinta-feira, 6 de maio de 2010

APRENDER A LER E A ESCREVER ALÉM DAS LETRAS - Eloiza Schumacher Corrêa

Reconhecer a escrita como linguagem significa admitir que seu ensino vai muito além do código e que é necessária uma abertura suficiente para encontrar possibilidades ampliadas de atuação
Encontrar caminhos que ajudem a fugir da produção de uma "fala morta" talvez seja um dos grandes desafios que temos enfrentado nas últimas décadas no que se refere ao trabalho com a alfabetização. Tornam-se cada vez mais freqüentes as iniciativas que explicitam que há muito a fazer em relação às possibilidades de interagir com uma escrita que tenha verdadeiramente um propósito comunicativo. Hoje podemos dizer que o espaço ocupado pela escrita no ambiente escolar já não é mais tão estreito assim.
Contudo, mesmo sabendo que os textos − felizmente − são presença constante nas salas de aula, ainda observamos seu uso apenas como pretexto para ensinar o código. Quando falamos em escrita, o que primeiro vem à mente são as letras, as palavras e a infinidade de combinações delas decorrentes. Nem poderia ser diferente, uma vez que escrever, numa primeira dimensão, significa registrar caracteres. E, nessa dimensão, conhecemos diversas possibilidades para ensinar a produzir e a reconhecer esses caracteres, ou seja, para adquirir o código. Entretanto, reconhecer a escrita como linguagem significa admitir que seu ensino vai muito além do código e que é necessária uma abertura suficiente para encontrar possibilidades ampliadas de atuação.
Desse modo, proponho neste artigo o exercício de compreender a escrita como linguagem e refletir sobre os desdobramentos decorrentes dessa compreensão na prática pedagógica. Pensar sobre qualquer linguagem (oral, corporal, gestual, midiática, gráfica, plástica, musical, escrita, fotográfica, gustativa, tátil, etc.) leva a pensar no desenvolvimento da expressividade, entendida aqui como a capacidade do sujeito de se fazer entender e entender o outro através de um sistema de signos.
Assim, a primeira condição para o desenvolvimento da expressividade é estar em interação com os outros. Embora essa constatação pareça óbvia, nem sempre é colocada em prática no cotidiano das escolas. Diria até mais do que isso: nem sempre é vinculada ao ensino da escrita. Quando nos aventuramos a fazer esse tipo de vinculação, novas necessidades no trabalho com a linguagem escrita na sala de aula fazem-se presentes. A intencionalidade do professor como alguém que organiza ações voltadas para a ampliação das capacidades expressivas torna-se muito relevante e abre-se espaço para outras modalidades de ação. Isso implica a possibilidade de encontrar no significado inerente às linguagens em geral brechas para o trabalho com a linguagem escrita.
Assim, não precisamos acreditar que só se aprende a ler e a escrever com letras, pois o que está em jogo são as habilidades necessárias para o sujeito ler e escrever, processo tão bem sintetizado por Magda Soares (1998) ao se referir às habilidades de leitura e escrita. Pensar dessa forma envolve a reflexão sobre o que é necessário para produzir linguagem escrita. Claro que o reconhecimento de caracteres faz parte, porém ficar restrito a isso é abortar a riqueza e a complexidade da linguagem escrita. Para ler e escrever é preciso muito mais. Como afirma Geraldi (1991), é preciso que o sujeito tenha o que dizer, tenha uma razão para dizer o que tem a dizer, tenha para quem dizer o que tem a dizer, constitua-se como sujeito que diz o que diz para quem diz e escolha estratégias para fazer tudo isso. Portanto, quando o propósito comunicativo das linguagens passa a ser realmente importante, antes e junto com o ensino das letras, devem ser criadas condições para exercitar a comunicabilidade. Para ampliar as possibilidades de expressão das crianças, é preciso compreender cada representação/produção como ato comunicativo (e, por isso, passível de ser socializado, lido e entendido pelo outro) e oferecer ferramentas para potencializar essa comunicabilidade.
Nesse caso, torna-se possível transformar a sala de aula em um ambiente comunicativo (seja na relação entre a criança e seu grupo, entre a criança e o professor, entre grupo e família, entre grupos, entre grupo e instituição). Ou seja, conceber que tudo o que é produzido, na sala ou fora dela, tem uma mensagem a ser entendida, e não somente uma letra, palavra ou sílaba para ser identificada. Quando, por exemplo, solicita-se às crianças que utilizem revistas na sala de aula, comumente os professores pedem que procurem palavras com tal letra, que recortem palavras que comecem igual ao seu nome ou que tenham tal sílaba, enfim, propostas reféns da aquisição do código, cujas habilidades requeridas são basicamente perceptivas e motoras. Transcender isso significa pensar na funcionalidade da revista na vida cotidiana: não lemos revistas para procurar letras ou palavras, mas sim para nos informar, nos divertir, nos distrair, saber o modo de fazer algo ou até mesmo descobrir uma fofoca. Porém, a escola age como se todos esses aspectos não fossem importantes.
Ao ver crianças interagindo com revistas, podemos notar que elas comentam sobre as gravuras, ensaiam a leitura dos textos, riem, trocam opiniões - não ficam procurando letras! Acredito que, se as propostas passarem a se centrar exatamente no que contam as revistas, teremos mais ganhos em relação à comunicabilidade. Propostas desse tipo desencadeiam assuntos, emoções, argumentações, risos. Por isso, tenho certeza de que também teremos mais ganhos em relação à alegria, ao prazer de conversar com o outro, à exposição de opiniões, à busca de informações e de conhecimentos para sustentar essas opiniões, a um contato com textos permeado pela curiosidade. No ano passado, minha filha, então com seis anos, enquanto brincava em casa, escreveu um hino para a Copa do Mundo. Como toda mãe coruja, achei o hino maravilhoso! Independentemente disso, eu fico pensando que textos como o seu, que realmente comunicam idéias, é que deveriam ir para a sala de aula, não para serem explorados do ponto de vista da ortografia e do reconhecimento dos sinais gráficos, mas para serem interpretados e enriquecidos com as opiniões de todos da sala. Quantos assuntos − seja através de desenhos, músicas, jogos − as crianças teriam para falar sobre a Copa do Mundo no ano passado! Da mesma forma, quantas oportunidades para incrementar seus discursos com a leitura e a interpretação de imagens e textos de jornais, revistas e televisão estavam disponíveis.
Descobriremos uma fonte inesgotável de alternativas para ampliar as possibilidades comunicativas das crianças quando nos interessarmos de fato por aquilo que elas têm a dizer nas mais diferentes linguagens e, sobretudo, quando conseguirmos, a partir desse interesse, oferecer ferramentas que ampliem suas possibilidades do dizer. Tal prática requer disposição para compreender suas produções como elementos comunicáveis e passíveis de serem entendidos pelo outro e, além disso, abertura para compreender que as crianças se relacionam com os mais diversos textos − plásticos, gráficos, escritos ou musicais − com a intenção de interagir com eles. Contudo, não basta apenas solicitar às crianças que desenhem, pintem, colem, façam esculturas para depois guardar as produções na pasta ou deixá-las expostas na parede para exibir aos pais. Mais do que isso, é preciso criar meios para refinar suas habilidades de comunicação, encorajando-as a explicar o que queriam dizer ou por que fizeram aqueles trabalhos, estimulando-as a pensar em títulos e comentários esclarecedores, explorando as possibilidades do dizer, a busca de recursos para expressar o que se quer, seja através do destaque e da transformação de traços, da inclusão de detalhes, da socialização de modelos, da oferta de novos materiais, do ensino de novas técnicas. Ou seja, é fundamental fazer a turma esforçar-se para entender e ser entendida, o que só vai ocorrer se suas produções forem expostas ao olhar do outro e colocadas para a apreciação e a discussão coletivas.
Quem sabe, esse não é um dos caminhos para que possamos deixar de entender o desenho, o jogo, a literatura como passatempos - o que se faz com freqüência nas escolas - e começar a entendê-los como linguagens repletas de idéias a serem exploradas? Quem sabe, esse não é um bom caminho para termos uma educação mais sensível às necessidades infantis, ato tão necessário quando se pensa que crianças menores estão agora, com o ensino fundamental de nove anos, obrigatoriamente na escola para serem alfabetizadas? Pablo Neruda disse certa vez: "Escrever é fácil: você começa com letra maiúscula e termina com ponto final. No meio você coloca idéias". É exatamente nesse "meio" que podemos concentrar nossas ações, o que não se faz somente com letras e palavras.
Eloiza Schumacher Corrêa é consultora de educação nas redes de ensino pública e privada nas áreas de educação infantil e ensino fundamental, pedagoga e assistente social, especialista em Alfabetização e Educação Sexual
eloiza.c@superig.com.br
REFERÊNCIAS
GERALDI, J.W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
SOARES, M.B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
http://www.revistapatio.com.br/conteudo_exclusivo_conteudo.aspx?id=59

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